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Estados, DF e municípios também podem regulamentar o SICX - Sistema de Compras Expressas?*

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  • há 20 horas
  • 9 min de leitura

Felipe Dalenogare Alves

Pós-doutor em Direito pela Università di Bologna.

Pós-doutorando em Direito pela Universidad de Burgos

Professor e Coordenador da Pós-Graduação lato sensu em Licitações e Contratos da Escola Mineira de Direito



Análise jurídico-constitucional que demonstra como a deslegalização do SICX abre espaço para regulamentos próprios de Estados, DF e, sobretudo, municípios.


(Se desejar, clique aqui para ler em pdf).



1. Introdução


A República Federativa do Brasil, por opção constitucional, está organizada sob o princípio fundamental da autonomia dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e municípios), conforme os arts. 1º e 18 da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Essa autonomia, que se manifesta nas capacidades de auto-organização, autogoverno, autoadministração e autolegislação, é constantemente tensionada pelo exercício da competência da União para editar normas gerais.


O art. 22, inciso XXVII, da CF/1988 confere à União a competência privativa para legislar sobre normas gerais de licitações e contratos em todas as modalidades, para a administração pública direta e indireta de todos os entes federativos, incluídas autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. Essa competência, contudo, não é ilimitada, pois esbarra na competência suplementar dos Estados (art. 24, § 2º), do Distrito Federal (art. 32, § 1º) e dos municípios (art. 30, incisos I e II), garantindo que as especificidades regionais e locais possam ser contempladas.


O advento da lei 14.133/21 (LLCA) e suas subsequentes alterações, como a que introduziu o SICX - Sistema de Compras Expressas, renovam o debate sobre o equilíbrio federativo. A questão central que se coloca é a seguinte: quando a União, em vez de utilizar o grau hierárquico da lei para disciplinar determinada matéria de licitações e contratos, remete o tratamento a ato normativo infralegal (regulamento), não estaria esvaziando o conceito de “norma geral” e, consequentemente, abrindo espaço à atuação normativa dos demais entes federativos?


Defende-se, neste short paper, que a transferência da regulamentação do SICX para decreto federal, em substituição a comando legal expresso e detalhado, configura degradação do grau hierárquico normativo, na linha do que ensina Canotilho1. Tal deslegalização implica o reconhecimento tácito de que a matéria não ostenta a natureza de comando primário, tornando-a disponível para ser regulamentada de forma autônoma por cada ente, notadamente pelos municípios, em face de suas peculiaridades administrativas e locais, como será visto a seguir.


2. A centralização normativa da União e a mitigação da autonomia federativa


A tendência histórica de a União legislar de forma exaustiva e minuciosa sobre temas que deveriam ser apenas enunciados em caráter geral deve ser reavaliada à luz da autonomia federativa. O conceito de "norma geral" deveria se restringir à definição dos princípios estruturantes e dos critérios mínimos de segurança jurídica. Contudo, como se observa na lei 14.133/21, a legislação federal sobre licitações e contratos transformou-se em um microgerenciamento das condutas administrativas locais, desconsiderando, muitas vezes, a diversidade de capacidades orçamentárias, estruturais e de gestão entre os entes.


Nesse diapasão, observa-se que o legislador da LLCA promoveu uma verdadeira hipertrofia do conceito de “norma geral”. Ao invés de limitar-se a traçar as balizas fundamentais dos procedimentos licitatórios e contratuais, o diploma federal buscou abarcar todo o ecossistema das contratações públicas, regulando minúcias operacionais e sistêmicas que, em última análise, comprimem o espaço de inovação e a capacidade de auto-organização dos demais entes2.


A intervenção excessiva da União na esfera administrativa dos entes locais não apenas tensiona o pacto federativo, como também desconsidera realidades profundamente distintas em um universo de mais de 5.500 municipalidades. Um município de pequeno porte, com recursos limitados, possui necessidades e realidades diametralmente opostas às de uma grande capital ou da própria União.


Quando o legislador federal avança além do essencialmente geral, ele praticamente esvazia a competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios de editarem normas suplementares ou de legislarem sobre interesse local, transformando o sistema federativo em uma estrutura quase centralizada. A lei 14.133/21, apesar de trazer avanços, peca ao tratar exaustivamente de inúmeras disciplinas e, ainda, remeter outras à regulamentação federal, a exemplo do caso que aqui se trata (o SICX), prolongando a tutela normativa da União sobre os demais entes e postergando a efetiva autonomia administrativa.


Não se sustenta, neste artigo, a conveniência de se instituírem quase seis mil leis diversas disciplinando licitações e contratos administrativos. É exatamente por isso que o Constituinte reservou à União a competência legislativa de estabelecer um norte, um caminho, por meio das normas gerais, para que os demais entes pudessem canalizar este vetor às suas realidades.


Esse balizamento conferido pelas normas gerais é fundamental, especialmente para o mercado, a fim de que consiga percorrer um caminho que possua um mínimo de uniformidade. Imagine como seria para os fornecedores brasileiros se, em um mesmo país, tivessem que conhecer e trabalhar com quase 6.000 leis licitatórias diferentes. Seria impraticável.


3. Competência legislativa e reserva legal às normas gerais


O conceito de "normas gerais" em licitações e contratos está intrinsecamente ligado à reserva legal conferida privativamente à União. A Constituição Federal exige que a disciplina geral da matéria seja estabelecida por lei da união (ato normativo primário, emanado do Poder Legislativo), conforme se depreende do caput dos arts. 22 e 48. Essa exigência hierárquica tem como função garantir a estabilidade e a publicidade dos critérios fundamentais que regerão a atividade em todo o território nacional.


No contexto constitucional brasileiro, norma geral, portanto, não se define apenas por seu conteúdo, mas igualmente pela forma que a veicula. Ela exige a participação democrática do Congresso Nacional e deve resistir à fácil alteração típica dos atos infralegais (Regulamentos).


Para fundamentar esse raciocínio, recorre-se à doutrina constitucionalista, em especial aos ensinamentos de José Joaquim Gomes Canotilho, no sentido de que é vedada a degradação do grau normativo hierárquico em matérias sujeitas à reserva legal estrita. O art. 22, inciso XXVII, da CF/1988, estabelece uma reserva de lei (formal e material) à fixação das diretrizes gerais de licitações e contratos administrativos. Se a própria Constituição impõe a forma legal à norma geral, a degradação dessa forma a um ato hierarquicamente inferior (regulamento) deve ser vista como a desqualificação da matéria como norma geral, permitindo que seja tratada de modo particular pelos demais entes da federação.


4. O princípio do congelamento do grau hierárquico e a degradação normativa


O princípio do congelamento do grau hierárquico revela-se fundamental para a proteção da autonomia dos entes locais no contexto do SICX. Conforme defendido por Canotilho3, quando uma matéria é regulada por um ato de determinado grau hierárquico em cumprimento de uma imposição constitucional - reserva legal (como a lei para as normas gerais), aquele grau hierárquico fica "congelado" para a disciplina daquela matéria. O princípio visa impedir a chamada deslegalização ou degradação do grau hierárquico, ou seja, a tentativa de disciplinar, em nível infralegal, uma matéria que a Constituição exige que seja tratada por lei.


Partindo-se desse pressuposto, o parlamento só pode promover a deslegalização daquilo que não é norma geral. Assim, ao promover a degradação do grau hierárquico de determinado tema, reconhece-se que ele (o qual será tratado no regulamento) não possui essa natureza. Não sendo norma geral, deixa de existir a competência privativa da União (art. 22, caput, da CF/1988) para legislar sobre a matéria deslegalizada.


No caso do SICX, introduzido na lei 14.133/21 pela lei 15.266/25, o próprio legislador da União estabelece, no art. 79, § 1º, inciso VII, que regulamento do Poder Executivo federal disporá sobre o SICX. Há, aqui, uma admissão legislativa: a matéria degradada não constitui norma geral, pois, do contrário, a deslegalização seria inconstitucional por afrontar o princípio da reserva legal.


O raciocínio é direto: se a disciplina do SICX fosse qualificada como norma geral essencial ao regime jurídico licitatório e contratual em todo o país, o princípio do congelamento do grau hierárquico imporia que seu regramento detalhado se desse por meio de lei da União. Ao optar pela remessa a um regulamento (ainda que mencione literalmente “federal”), sinaliza-se que:


1) a matéria possui natureza eminentemente detalhada, específica e procedimental, não ostentando caráter propriamente “geral”; ou


2) há verdadeira degradação do grau hierárquico de norma geral, conduta vedada pela reserva de lei prevista no caput dos arts. 22 e 48 da Constituição Federal.


Assim, é forçoso reconhecer que a disciplina do SICX, no nível infralegal, perde o status de norma geral vinculante para os demais entes federativos, podendo estes tratar de suas especificidades em regulamento próprio, ou a degradação é inconstitucional por violar o princípio da reserva legal.


5. O SICX e a inexigibilidade de norma geral federal em nível regulamentar


Promovida a degradação hierárquica da matéria, o vácuo de uma norma geral de nível legal detalhada sobre o SICX libera a competência dos demais entes federativos. O município, titular da competência para legislar sobre interesse local (art. 30, inciso I, da CF/1988) e para exercer a competência suplementar (art. 30, inciso II, da CF/1988), passa a ter plena legitimidade para editar seu próprio regulamento sobre o Sistema de Compras Expressas, atendendo as diretrizes (gerais) contidas no inciso VII, do § 1º, do art. 79 da lei 14.133/21.


A regulamentação local do SICX (que deverá, como piso, tratar das condições de admissão e de permanência dos fornecedores; das regras para inclusão de bens e serviços e para formação e alteração dos preços; dos prazos e os métodos para entrega e recebimento dos bens e serviços; das regras de instrução processual e de uso da plataforma; das condições de pagamento, com prazo não superior a 30 dias, contado do recebimento do bem ou serviço; e das sanções aplicáveis ao responsável por infrações) é a manifestação da autonomia administrativa e do autogoverno dos entes locais.


Cumpre reconhecer que os municípios são os principais beneficiários da agilidade proporcionada pelo SICX em suas contratações cotidianas e, por isso, detêm o interesse primário e a expertise local necessários para definir o detalhamento de sua operacionalização.


A União só poderia impor sua normatização detalhada a todos os entes se a lei 14.133/21 tivesse esmiuçado o SICX de forma exaustiva (respeitando o congelamento do grau hierárquico) e se a matéria versasse sobre um assunto de interesse nacional incontornável.


No entanto, como a União rebaixou o tratamento do SICX para ato infralegal, indica-se que se trata de uma norma de execução (detalhamento) e não de uma norma geral de fundo, a ser tratada uniformemente para toda a federação.


Dessa forma, os demais entes federativos não se encontram juridicamente vinculados à necessidade de aguardar ou seguir, de modo obrigatório, o decreto federal que venha a detalhar o SICX. O ente local pode, e deve, editar seu próprio regulamento, adaptando os procedimentos de compras expressas à sua realidade orçamentária, tecnológica e administrativa, em estrita obediência às normas gerais, especialmente os parâmetros indicados no inciso VII, do § 1º, do art. 79 da lei 14.133/21.


6. Conclusão


O debate acerca da normatização federal de minúcias em matéria de licitações é, em essência, um debate sobre a observância da autonomia federativa. A interpretação da expressão “regulamento federal” contida no inciso VII, do §1º, do art. 79 da lei 14.133/21, deve ser realizada conforme a Constituição (Verfassungskonforme Auslegung), sob pena de inconstitucionalidade não só por invasão de competência dos demais entes, mas por violação à reserva legal, que se reforça quando a própria União, ao dispor sobre um tema novo como o SICX - Sistema de Compras Expressas, o faz mediante um rebaixamento do grau hierárquico, degradando a disciplina da lei (indispensável às normas gerais) para o regulamento.


Assim, à luz da doutrina de Canotilho sobre o congelamento do grau hierárquico, essa degradação é a constatação de que o SICX, em seu detalhamento operacional, não se reveste do caráter de norma geral, que exige, por mandamento constitucional, a forma de lei. Consequentemente, a matéria é remetida à competência suplementar e específica dos Estados, do Distrito Federal, e, sobretudo, dos municípios, que devem ter a prerrogativa de regulamentá-la.


O ente local, ao editar regulamento próprio sobre o SICX, em conformidade com as diretrizes gerais previstas no inciso VII do § 1º do art. 79 da lei 14.133/21, não viola a lei de licitações e contratos administrativos, mas exerce sua autonomia constitucional de autoadministração e autolegislação, adequando a inovação legal à sua realidade de interesse local.


Referências


ALVES, Felipe Dalenogare. DURA LEX SED LEX: três pontos da lei 14.133/21 com os quais é possível não concordar, mas necessário cumprir. Migalhas de peso. 26 de abril de 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/385429/tres-pontos-da-lei-14-133-21-que-e-necessario-cumprir. Acesso em 30 nov 2025.


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm


BRASIL. Lei nº 14.133/2021, Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm


CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. 20. reimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 841.


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1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. 20. reimp. Coimbra: Almedina, 2003.


2 ALVES, Felipe Dalenogare. DURA LEX SED LEX: três pontos da lei 14.133/21 com os quais é possível não concordar, mas necessário cumprir. Migalhas de peso. 26 de abril de 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/385429/tres-pontos-da-lei-14-133-21-que-e-necessario-cumprir. Acesso em 30 nov 2025.


3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. 20. reimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 841.



*Como citar este artigo: ALVES, Felipe Dalenogare. Estados, DF e municípios também podem regulamentar o SICX - Sistema de Compras Expressas? In: Portal Migalhas. Migalhas de Peso. Publicado em: 3 dez 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/445405/estados-df-e-municipios-tambem-podem-regulamentar-o-sicx. Acesso em: XX mês. 20XX.

 
 
 

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